sábado, 27 de agosto de 2011

Atlas e Axis (Parte 2)

Os sons repetidos, me fizeram andar mais devagar involuntariamente para escutar melhor o que se passava. Senti o instante em que meus neurônios processavam o estímulo auditivo em imagens. Os ruídos familiares transformaram o ambiente em um local inóspito rodeado pela angústia da sensação da traição. Caminhei pé ante pé afim de constatar o que já se era sabido. O calor do momento era notado em ondas visuais que me proporcionaram nojo. O fio da saliva, os cabelos desfeitos, o suor entre os ralos cabelos grisalhos, a pele flácida dos culhões e a virilidade debitada da minha boa vontade em comprar-lhe a medicação. A caminhada tornou-se silenciosa. As repetições sonoras menos audíveis. Nauseabundo, com as mãos nas paredes da cabine sanitária, o líquido ácido queimava-me em sentido contrário ao fisiológico. Tomou-me a orofaringe e a nasofaringe, explodindo nas paredes do sanitário que volatilizava amônia.


Minha mente muitas vezes me torturava com algumas lembranças indesejáveis. Como de comprar a medicação para Seu Abílio, ele tinha vergonha do farmacêutico. Eu costumava me autoflagelar mentalmente. E hoje, eu gostava disso. Me motivaria a cumprir meu plano.

     Não acordei disposto a olhar para a cara da Patrícia hoje, também não dei qualquer satisfação sobre a minha falta. Pessoas realmente doentes não podem avisar. Arnaldo Vieira de Jesus estava em crise, necessitava de repouso absoluto e medicamentos para dores muito fortes. Hérnia de disco pode ferrar com a vida de um cara ativo. Em seguida, liguei para o Tonho:

Como vai meu querido? Como estão as coisas aí no sítio? ”

Aqui anda tudo na mesma, Seu Pedrosa, a produção de leite não aumentou muito, mas acabei de botar as meninas na braquiária e aumentei o farelo. Tudo como o senhor mandou. Acho que em uns dias a Lagoinha vai botar pra mais de 25 litros! ”

Bom, muito bom. Diga-me uma coisa, estou voltando essa noite, vou passar uns dias do fim das minhas férias aí. As crianças chegam amanhã. Por favor, mate um leitão bem gordo e deixe no freezer. Deixe o restante por minha conta. Obrigado Tonho. Fique com Deus.”

Eta nós hein Seu Pedrosa! Leitão é bom demais! Deixa com nós!”

     Atlas e Axis estavam bem tranquilos hoje. Sentado no sofá, Atlas costumava por a cabeça na minha coxa e levantar os olhos para me observar. Ele sempre estava ao meu lado, me seguia pela casa. Axis sempre foi mais solitário. Gostava de se despojar em locais frescos, como o piso da cozinha. Sempre com as patas abertas e a barriga encostada ao chão. Eu não sentia que gostasse menos de mim por isso. Ele sempre me trazia pássaros, ratos, entre outros animais de presente quando conseguia capturá-los. Ainda me lembro de quando os consegui. Na época, o Geraldo ainda mexia com contrabando de animais e trouxe os lobos da Checoslováquia. Eu nunca os vi antes. Eram realmente lobos e, não inspiravam segurança aos estranhos que os viam. Por isso eu não costumava passear com eles em horários comerciais. Eles também preferiam as madrugadas. Por onde será que o Geraldo anda? Creio que ainda trabalhe na imobiliária.

     O meu passado é dividido entre a minha história verdadeira e na minha história fantasiosa, contudo, é uma divisão interligada, como a via linfática e a corrente sanguínea. Todos os seres humanos praticam e vivem da maneira que mais os agradam. Comigo não é diferente. Eu gosto muito do meu trabalho. Sou médico legista. Trabalho no IML e prefiro lidar com os mortos. Desde a época da minha residência era assim. Ainda na faculdade, conheci o Eliot. Ele veio para o Brasil com sete anos. Era alemão. Quando o vi pela primeira vez, estava sentado em sua carteira na sala de aula e desenhava num caderninho. Cheguei bem próximo sem que notasse e observei que desenhava um corpo, em decúbito dorsal, com detalhes musculares perfeitos. Ao notar a minha presença, não demostrou qualquer surpresa. Sem tirar os olhos do desenho:

O que faz aqui, Herr?”

Ele tinha sotaque de alemão. Tinha os cabelos ruivos e ondulados, colados à cabeça. Era possível perceber que passava horas penteando-o daquela maneira para que nenhum fio estivesse desalinhado. Quando me chamou de senhor, no seu idioma, notei que não queria aproximação. Mas eu sabia falar alemão.

Quero te fazer uma proposta, mein bruder.”

Ele aceitou.

Eliot, veja isso! Ele possui aderência em todas as vísceras internas. Já havia visto isso antes?”

Sim. É muito comum nas bovinos.”

Nós costumávamos usar os mendigos no começo. Mas a sensação era cada vez mais incrível. Na bancada do necrotério, deitado, com os olhos abertos, os cabelos bagunçados, as pernas gordas cheias de estrias próximas das nádegas, a boca aberta assim como seu tórax, o policial Meireles, O+, era um bom homem. Não tinha qualquer patologia, mas movia nossos instintos. O meu, de ver o terror nos olhos de outrem antes da morte e, o de Eliot, ao desenhar os corpos. Formamos uma grande dupla, até que Eliot retornou à Alemanha para a residência. Nunca mais nos encontramos.

     Hoje seria Patrícia. Deixei os sapatos, as roupas, o perfume, o aparelho de barbear, a escova de dentes, a louça na pia e apanhei as chaves do gol. Andavam ao meu lado, Atlas na direita e Axis na esquerda. Próximo de uma hora da madrugada, eu já estava dentro do meu carro e me encaminhava para próximo do restaurante. No caminho, relembrei do gol previamente boiando no rio, quando a água começou a penetrar pelas janelas e o engoliu. Esse carro era realmente melhor, além de ter os vidros muito escuros. A estrada estava chuvosa e o asfalto parecia brilhoso. Na esquina do restaurante, o namorado de Lucinha a esperava com flores. Parecia nervoso. Daqui, de onde estou, vejo tudo muito claro sem ser observado. Lucinha como sempre, sai primeiro. A mocinha é muito tímida e anda rapidamente. Nem imagina quem a espera na esquina. Abraça-se pelo frio da garoa, põe o rosto reclinado para o chão e virando na esquina, surpreende-se.

     Exatamente 33 minutos depois, Patrícia. Ria alto. Não parecia se incomodar com o frio. Logo atrás dela, o cozinheiro novo. Ambos estavam fechando o restaurante. O rapaz era baixo, os cabelos castanhos bagunçados e na face eu podia ver a expressão de quem acabara de fazer sexo. Ele usava óculos também. Era bochechudo e se parecia muito com meu filho. Inexplicavelmente sentia um carinho pelo rapaz. Ele a acompanhou até o ponto de ônibus. Tive a certeza de que transaram quando inocentemente a pegou pelas mãos. Pobre diabo, ainda não sabia tratar uma puta como se merece. Liguei o carro, olhei pelo retrovisor, Atlas deitado no banco de trás levantava os olhos para me observar. Axis olhava atento um rato, que andava no muro. Arranquei, numa velocidade de quarenta quilômetros por hora aproximadamente, parei cerca de três metros do casal. O rapaz não me conhecia. Desci.


Continua...

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