sábado, 13 de agosto de 2011

Valdete

     Dias de reflexão não costumam me levar a nada. Mas hoje eu cheguei a várias conclusões, uma delas é que eu sou tímido. Mas não sou um tímido comum. Talvez essa não seja a palavra exata para me definir, mas não tenho um vocabulário tão extenso que me permita tal definição. Minha timidez só aparece em determinados momentos. Não sou tímido quando estou conversando em público ou nas apresentações do teatro. Sou tímido por não saber chegar junto. Comecei a reparar nisso quando me interessei pela Valdete. Quando entrei no grupo de teatro, Valdete já fazia parte e sempre recebia os melhores papéis. Mas não acho que recebesse os melhores papéis pela sua competência, que era muita. Ela dava pro diretor do grupo. Se era por amor ou por safadeza eu não sei, mas o cara era casado e tinha uma filha muito doente. Sempre que vejo os dois conversando baixinho pelos cantos do teatro eu me recordo daquela menina empurrada pela mãe na cadeira de rodas. Ela não tinha um ar saudável e, a mãe menos ainda. Talvez pelo fato de ser desgastante cuidar de uma cadeirante.
     Ontem recebemos novos papéis de uma peça que estrearia logo. Como era se se esperar Valdete ganhou o melhor papel feminino e surpreendentemente eu, o masculino. No instante que recebi a notícia fiquei tão feliz que nem sabia direito a razão. Minutos depois a Valdete veio ao meu encontro e me disse que eu estava de parabéns, desde que entrara no grupo estava evoluindo a olhos vistos. Enfim, me convenceu. E realmente havia me esforçado.
     Não sei se isso acontece com todos os caras, mas sempre que eu entro no ônibus fico de pau duro. Tem hora que isso é constrangedor. Se o metrô fizesse o caminho, certamente escolheria. Mas na minha cidade ainda não existem metrôs. Todos os dias faço o mesmo percurso durante as férias do trabalho. Só continuo as atividades do teatro. Porra, que fome. Acabo de me lembrar que na minha casa não tem nada e eu to duro. Coço a barba, e continuo andando com uma cara de bunda. Acho que sempre faço essa cara. A Clarice uma vez me disse que eu tenho cara de bunda na rua. Clarice devia falar aquilo para me humilhar em frente das amigas. Eu não tinha cara de bunda. Talvez uma expressão anal ao andar pela rua, que não era nada bonita ou inspiradora. Saco as chaves do bolso esquerdo, mas o portão fora aberto antes mesmo de usá-la.

"Muito obrigado Rosinha."

"De nada Rafa! Tudo bem?"

"Sim. E contigo?"

"Agora melhor, desci para pegar a correspondência. Como sempre sua conta de telefone estava na minha caixa."

"Valeu."

Peguei a conta e já no terceiro degrau da escada, Rosinha me chamou.

"Rafa! Eu estou com um probleminha lá em casa. Não consigo instalar o bujão de gás."

"Mais tarde eu passo lá e te ajudo."

Continuei subindo e chamei o elevador.

"Desculpa, mas é urgente. Tive que parar o almoço pois o gás acabou na horinha que eu estava preparando."

Abri a porta do elevador e esperei que entrasse. Eu já estava acostumado com as urgências da Rosinha. Chegando ao apartamento dela, troquei o bujão, almocei e fomos pra cama. Como sempre. Eu nunca precisei usar artifícios para ficar com qualquer mulher. Elas sempre vinham até mim e se insinuavam. O meu papel sempre foi de coadjuvante nesse cenário. E é exatamente por isso que eu afirmo que sou tímido.

     Pensando bem, acho que nunca me interessei por uma mulher que já não estivesse interessada por mim. Valdete foi a primeira.

     No ensaio, fiquei assistindo os outros passarem seus textos, eu fazia parte do segundo ato. Valdete tinha o corpo perfeito. A bunda não era grande, era firme e tenho certeza de que seria a mesma estivesse ela deitada ou de pé. Talvez por ser negra me encantasse mais. Nunca havia sequer beijado uma mulher negra. Seus seios pareciam de boneca, eram perfeitos, idênticos e os mamilos sempre apareciam, em qualquer blusa. Sua boca tinha algo que me instigava, os dentes entravam rente aos lábios inferiores, sobressaltando-os. Me imaginava passando aquela boca em mim e sua língua também. Quando chegou a minha vez eu estava de pau duro. Não dei a mínima importância, mas a Valdete percebeu. Logo após o ensaio, na parte de trás do palco as gêmeas estavam conversando e por detrás delas a porta estava entreaberta, pude ver que estavam discutindo. Passei por perto, andando mais lentamente e fui até o vestiário. Ele entrou bufando.

"Rapaz! Nunca se envolva com mais de uma mulher."

Fiz que sim com a cabeça e comecei a trocar a roupa. O diretor insistiu.

"Você é casado? namora?"

"Não. Não tenho ninguém."

"Feliz é você."

Continuei em silêncio. Aquela situação me deixou feliz. Não acredito que os casamentos sejam felizes para sempre. Mas não acho válido ser como ele fazia. Meu pai sempre me disse que um homem que honra suas calças não maltrata quem as lava. Nunca magoaria a mulher que me casei, mesmo que parecesse impossível.

"Não vou mais comer a Rosinha. Não tenho mais tesão nela."

 Decidi isso naquela noite enquanto estava deitado no chão da varanda do meu apartamento.

     Rosinha era uma boa moça e me dava o que comer sempre. Será que ela sabia que eu não tinha nada em casa? Acho que não. Rosinha era estudante de direito, morava com uma amiga que estava sempre louca. E hoje tinha festa na casa dela. Vou fingir que não estou em casa. Estão fumando maconha lá embaixo e o som está muito alto. Pela primeira vez não quis descer. Já sei, vou tomar um banho pensando na Valdete.

"Rafael, trouxe seu texto. Sabia que ontem você esqueceu ele no vestiário?"

"Não me lembrava. Mas como achou?"

"O diretor me pediu que entregasse. Ele não vem hoje, foi até o hospital com a mulher e a filha."

"A menina está mal?"

"Não, é só um exame."

"Pobrezinha."

"Preciso da sua ajuda com minhas roupas, pode ser?"

Segui Valdete até a coxia. Ela foi se despindo e ficou nua, na minha frente. E começou a fazer o mesmo comigo, não consegui mover um músculo, fiquei paralisado.

"Rafael? O que está acontecendo?"

     Acordei suado e atrasado. Nem tomei banho. Só comecei a pensar quando entrei no ônibus. Eu não tinha coragem de tomar nenhuma atitude que transparecesse meu interesse. Eu era tímido. Merda. Vou vencer isso, hoje.

     Na frente do teatro, uma roda de pessoas. Estavam todos com cara de bunda. Fiz também, para não parecer diferente. Infelizmente eu era mais alto que todas aquelas pessoas e pude ver nitidamente o que havia no meio daquelas pessoas. Era Valdete.




Um comentário:

  1. "um homem que honra suas calças não maltrata quem as lava" é, deveria ser assim

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